Martinho Lutero visita a EXPO ABRH

Ou: uma crhônica sobre como vencer os pecados e ainda ter saudades da Feira da Ladra
(meus caros, o tal administrador ainda não me permite postar. Isso é censura)

No ano passado, estive neste recinto de troca de calor humano, de experiências, de brindes e de cartões de visita. Vindo de outra época, meu primeiro contato com a EXPO ABRH foi um misto de prazer e saudade. Prazer pelos inúmeros cafés que tomei. Em nada eles se comparam aos que experimentei durante as Cruzadas das quais fiz parte, ainda no século 12.

O café praticamente não existia na Europa, como ainda não existe nos EUA. Foi com os nobres que, sob a missão divina de retomar a Terra Santa, partiram nas Cruzadas que a apresentação dessa bebida inebriante se deu. No contato com os mouros, descobrimos que era possível manter-se acordado por mais horas e, se o consumo fosse em um volume maior do que o corpo humano permite, era também possível pegar uns dias de licença das lutas em função de uma forte dor de estômago. Alguns até passavam por sangrias, mas o humor devido não se equilibrava no organismo.

Mas não era o humor que vocês pensam, até porque muitos ali encaravam a coisa seriamente. Para nós, existiam no corpo humano quatro tipos de humores, que definiam o jeito da pessoa e os problemas possíveis. No fim e ao cabo, a solução era quase sempre a mesma: sangria. Mas não era a sangria que vocês pensam, aquela que vai vinho e pedaços de fruta. Era de sangue mesmo, tirado por meio de cortes em veias ou com o uso de sanguessugas. Mas não eram aquelas sanguessugas que vocês pensam: pessoas que trabalham com vocês na empresa, que sugam suas energias, suas ideias (e as apresentam como se fossem delas), que sugam qualquer oportunidade de um reconhecimento indevido.

Não, não vale sangrá-las, isso pode ser um crime.

De tão novo e forte ao paladar de criança dos europeus, eis que um frade capuchinho resolveu criar uma receita que tornasse aquele líquido precioso mais palatável. Mistura uma coisa aqui, agita acolá e, voilà, tínhamos o cappuccino. Até se tentou criar uma rede de franqueados pelo caminho, mas não deu certo. Essa foi a parte do prazer.

Falemos agora da saudade que me bateu no ano passado ao não ver nesta feira os típicos espetinhos de javali, os saltimbancos e, trazendo um pouco dos torneios, as justas que faziam a plebe gritar de entusiasmo e um cavaleiro, de dor.

Mas este ano, vi coisas diferentes, que atiçaram mais saudades e um pouco de curiosidade sobre o que pensaria Martinho Lutero se aqui estivesse.

Spoilertelling (esse termo é meu)

Até tentei trazer o velho “MaLu”, carinhosamente como o chamo, para viajar comigo a este lugar e tempo. Mas, pai dedicado que é, queria passar tempo com seus filhos e sua amada esposa, ou melhor, “minha estrela do céu”, como ele a chamava. Fofo. Catarina von Bora, a ex-freira que casou com ele e com a qual teve seis filhos, deve se orgulhar muito de MaLu. E foi com base nesse orgulho que até tentei convencê-lo mais uma vez a vir comigo.

– Meu querido, deixe-me fazer um spoilertelling.

– Perdão?

– Quem sou eu para perdoar você, um homem extremamente religioso. O que quero te dizer, antecipando algo do futuro, daí o spoiler, é que você é um cara disruptivo.

– Isso me leva ao inferno?

– Não, de maneira nenhuma. Talvez, o levaria ao céu, na forma de um unicórnio.

– Perdão?

Tive de explicar a ele que, com suas 95 teses, ele simplesmente pivotou a Igreja na terra. Criou um MVP e entrou de corpo e alma na construção de um novo rito. E, por isso, seria interessante conhecer outros cavalheiros e damas que também criaram suas “teses” para deixar de lado uma zona de conforto, buscando modelos mais ágeis, com tecnologia generativa, para curar a dor de uma empresa ou mercado.

– Perdão?

Até tentei animá-lo mais uma vez. Sabedor que sou de seu enorme apreço pelo que chamam hoje de boliche, expliquei que, nesta feira, havia um enorme jogo de boliche, com pinos do tamanho de um homem. E o objetivo ainda era derrubá-los, mas com uma pessoa sentada na enorme bola.

– Perdão?

Sentada em uma enorme bola, presa a um fio de aço. Assim como a cantora Miley Cyrus, no vídeo da música “Wrecking ball”, bola de demolição. Essa pessoa era puxada para trás por um funcionário do pequeno estabelecimento e, depois, empurrada, a fim de derrubar os tais pinos.

– E o que ela ganhava? Era uma mostra dos pecados superados?

Aqui vale explicar: antigamente, o boliche tinha lá esse caráter religioso. O fiel lançava a bola e cada pino que derrubasse significava um pecado vencido. Talvez muita gente não praticasse esse esporte com medo de a bola correr sempre pela canaleta… Era o sinal claro de que ele seria lançado diretamente ao inferno.

MaLu era tão entusiasta desse jogo que chegou até a propor algumas regras, como a disposição e números de pinos. Nove. Seria uma tríade de trindades?

– Mas quais pecados uma pessoa nessa atração poderia superar?

Não quis entrar em detalhes sobre as possíveis respostas para não desanimá-lo do futuro. Certamente ele iria protestar muito contra essa minha visão, corroborada em minhas viagens pelo espaço e tempo. Mas vou discuti-las entre vocês.

Talvez o pecado da gula, que faz com que o vale-refeição acabe bem antes de o mês findar. Ou o pecado da avareza, no caso da empresa, em oferecer um valor baixo.

Há ainda o pecado da inveja, que faz com que boatos comecem a correr pelo ambiente cada vez mais colaborativo da organização contra uma pessoa. Muitos, de fato, colaboram, aumentando um pouco a fofoca. No fim do dia, na hora do happy hour, o objeto das conversas é o primeiro a ser convidado para tal encontro. Ah! O pecado da hipocrisia.

– Poderia ser essa atração uma espécie de treinamento?

Pensando bem, até que sim. Como vencer seus concorrentes em uma vaga, derrubando-os em grupo. Como desligar vários profissionais ao mesmo tempo e, no fim, ainda ganhar um bônus.

– Qual?

Uma sacola de cor aberrante. Uma caneta. Uma bola para aliviar o estresse, uma garrafa de água.

– Água? Nossa, que riqueza. E cerveja, serviam?

Sim, havia cerveja e a água do futuro já não é tão imprópria para o consumo. Até as crianças podem beber – a não ser em algumas regiões da cidade, mas isso é outro problema, ou pecado. Mas a cerveja…

Vi muitas pessoas desfilando com copos daquele líquido amarelo, com aquela espuminha branca. E gelada. Num ambiente quente, era uma ótima pedida, assim como os sorvetes que transitavam nas mãos de visitantes e congressistas.

– Sorvetes?

O doce gelado das montanhas

O espanto dele era justificado. Ele é um amante da cerveja, em especial a que sua “estrela do céu” fabricava. Espantados? Não é pelo fato de MaLu ser um líder religioso que ele deixava de beber. Havia uma certa oração na cerveja. Ademais, a qualidade da água naquela época não era das melhores.

Sorvetes eram produtos que, comparados com os de hoje, em quase nada se assemelham. Apenas alguns nobres tinham condições de usar gelo, trazido do alto das montanhas, por exemplo, em uma mistura com frutas e mel. Tirando o mel, essa iguaria da realeza está mais para a famosa “raspadinha” que vemos em alguns lugares e feiras populares, do que um corneto.

Parecido com o que existe hoje vi pela primeira vez na corte de Catarina de Médici, lá pelo século 16. Bernardo Buontalenti. Esse é o nome do responsável por criar uma sobremesa gelada em que iam mel, vinho e gemas de ovo para um banquete especial. E o indivíduo fazia jus a seu sobrenome: tinha muitos bons talentos. Era arquiteto, cenógrafo, engenheiro voltado para projetos militares e ainda se virava na cozinha. Era talvez um polímata, perfil discutido em uma palestra do CONARH como a ser mais demandada daqui para a frente nas empresas. E como as empresas irão recompensar profissionais como esses? Quanto Bernardo ganhou quando Catarina deu uma lambida no sorvete e sentiu que era bom?

Os Médicis tinham experiência em atrair, reter e manter talentos, com boa remuneração, casa, comida e roupa lavada.

– Perdão?

Ah! A minha feira da ladra

MaLu estava meio atônito com minhas divagações e pediu mais uma vez para me dizer o que havia na feira futura a qual me referia. O que eu poderia dizer? Pessoas e mais pessoas se encostando em paredes coloridas para fazerem um retrato instantâneo de si.

– Perdão, com tinta a óleo?

Não, com uma máquina chamada smartphone, criado para as pessoas falarem entre si, mas que tal função é a menos usada. São as mensagens no Zap, no Insta, os áudios, os emojis… Havia também aqueles testes de força, nos quais um ser tenta, com o auxílio de uma marreta ou algo parecido, fazer com que sua força seja verificada após aplicar um forte golpe em um botão. Uma atividade talvez bem apropriada em tempos de preocupação com a saúde mental e a qualidade da liderança. Basta respirar fundo, fechar os olhos, sentir o coração bater um pouco mais forte, mentalizar aquele sanguessuga do seu chefe e “pam”! Quem ganhou os melhores brindes com essa atração foram os que melhor mentalizaram tais colegas de trabalho.

Mas o que tinha mesmo era gente. Algo comparado com as feiras de Champagne, na França, ou a de Flandres, no que hoje é a Bélgica. Estas eram a grande oportunidade de comprar tecidos finos, sentir o aroma das especiarias, apreciar um bom pedaço de javali ou de pato. Beber muita cerveja e vinho. E a posição de cada uma era estratégica, em geral nos grandes entroncamentos das rotas comerciais. Acesso fácil…

E as atrações? Os animais adestrados, os Jesters, ou bobos da corte, os malabaristas. Sacolas com os nomes dos artesãos, squeezes com os selos reais. Peraí, é tanta gente que estou perdido, ai que saudade da minha Feira da Ladra…

Ah! Em Lisboa, desde o século 13, temos a Feira da Ladra. Não era esse assombro francês, embora alguns de tal país pudessem vender seus queijos para lá. Mas não eram como os da Serra da Estrela ou de Castelo Branco. Nem as comidas, como sopas de cavalo cansado, papas de trigo, os pães com sardinha assada e sua habitual fragrância.

Fico imaginando nos pequenos estabelecimentos desta feira, se iguarias como essas fossem distribuídas. Um copo de café de cevada. Um pedaço de alheira. Ou talvez até os doces – a alegria de muitas crianças que apenas tinham acesso a alguns em feiras como a da Ladra. Toucinho do céu, o pão de ló, os fios de ovos. Ah! E um especial. Até imagino a cena: o visitante passa por um desses pequenos estabelecimentos e uma moça risonha pede para ler o tal “que ar pode”. Ao final, pergunta se o transeunte prefere levar para comer um alfenim ou uma barriga de freira.

– Perdão?

Calma, MaLu, sua esposa é ex-freira e aquilo é apenas um doce conventual feito com gemas, pão e açúcar… Nossa, quase fui para o inferno agora.