Uma viagem de 180 anos em um DeLorean

No ano em que a ABRH Brasil completa 60 anos de vida, que tal repassar algumas evoluções e apostas em gestão de pessoas?

Vamos imaginar que encontramos um artefato que nos permita viajar pelo tempo e espaço. Pode ser o imaginado por H.G. Wells, em “A máquina do tempo”, de 1895, ou um carro como o DeLorean, mais “recente”, de 1985 da trilogia “De volta para o futuro”. Curiosamente, os anos são parecidos e a atriz que interpreta a namorada do jovem Marty McFly (interpretado por Michael J. Fox) é Claudia Wells (no papel de Jennifer Parker, depois interpretada por Elisabeth Shue). E o mais curioso é que Claudia é neta de nada mais, nada menos: H.G. Wells!

Ok: deixemos essas curiosidades de lado. Mas vamos manter a curiosidade (tema do CONARH!): acontece que nossa viagem no tempo não seja uma ficção científica quando o assunto é gestão de pessoas no Brasil. Em 65 anos de existência, a ABRH Brasil testemunhou – e protagonizou – uma transformação que faria inveja aos roteiristas de Hollywood: do rígido “departamento de pessoal”, comandado pelo caricato Gerúbal Pascoal aos modernos CHROs discutindo inteligência artificial nos conselhos administrativos.

Para nos acompanhar nessa jornada temporal, conversei com Dadson Moraes, vice-presidente da ABRH Brasil. Ele vai nos guiar por essa fascinante arqueologia corporativa, revelando como chegamos de um mundo de fichas de papel e máquinas de escrever a uma realidade na qual algoritmos participam do recrutamento e a saúde mental virou prioridade estratégica.

Dadson, em 1965, quando a entidade que seria depois a ABRH foi fundada, ainda se falava em “departamento de pessoal”. Gerúbal Pascoal, chefe do pessoal, era uma referência que perdurou como caricatura de uma área estritamente operacional. Como você enxerga essa evolução de um “RH administrativo” para um RH estratégico?

Nesses 60 anos da ABRH, a área de gestão de pessoas passou por uma transformação extraordinária. Começamos com o departamento de pessoal, evoluímos para administrativo de pessoal, depois recursos humanos, gestão de pessoas, e hoje falamos muito em cultura e gente. O mais fascinante nessa trajetória é que houve muitos ciclos de valorização do olhar para as pessoas. Desde 1965, começou a surgir essa perspectiva mais humanizada. Mas no final dos anos 90, vivemos um período chamado de reengenharia, que afetou drasticamente a área de recursos humanos. Voltamos a ser quase um departamento pessoal, mais humanizado, mas ainda muito operacional, com grande abertura para consultorias externas. Muitas empresas nesse período simplesmente extinguiram seus RHs e contrataram serviços temporários por meio de consultorias. Isso durou cerca de seis ou sete anos, até a reinternalização da área. A cada dia, o olhar para o ser humano se tornou mais central. Hoje falamos não só do físico, dos benefícios e bem-estar, mas também da saúde mental – inclusive com a importância da NR-1, que regulamenta o ambiente saudável nas organizações. O RH se transformou em um verdadeiro agente de transformação cultural. Acredito que a ABRH teve papel fundamental nesse processo, impulsionando o conhecimento dos profissionais em todo o Brasil e servindo como referência internacional.

Roberto Carlos, também há 60 anos, espalhava para o mundo o seu amor por um Calhambeque. O antigo veículo não se comparava com a “modernidade” do Cadillac que ele deixara em uma oficina, mas conquistou o coração do nobre cantor capixaba. Naquele tempo, o pessoal do DP/RH usava e abusava de fichas de papel, máquinas de escrever e calculadoras mecânicas. Hoje, o CONARH 2025 dedica painéis inteiros à inteligência artificial aplicada ao RH. Como você vê essa transformação tecnológica?

Durante esses 60 anos, houve uma transformação gigantesca tanto no pensar das pessoas quanto nas ferramentas de trabalho. Saímos da era do telégrafo, das máquinas de datilografia – primeiro, manuais, depois elétricas – até a chegada dos computadores. Nos últimos 25 anos, com a intensificação da internet e a democratização dos computadores, tivemos uma modernização acelerada das empresas. E agora estamos falando da transformação pela inteligência artificial. Por isso, no CONARH deste ano, teremos não apenas trilhas e painéis, mas muitas experiências práticas nas quais as pessoas vivenciarão de fato a tecnologia e a IA no trabalho cotidiano. Hoje, a inteligência artificial otimiza desde o início dos processos de recrutamento e seleção até análises comportamentais, avaliações de desempenho, definição de competências e desenvolvimento. O CONARH vai aprofundar ainda mais esse olhar para a inteligência artificial.

Para apimentar um pouco, uma pergunta: ainda hoje é possível ver quem deixe de lado um Cadillac, com sua modernidade, e fique com um Calhambeque, aquela máquina antiga, em RH, com medo de não saber como dirigir o primeiro?

Fazendo essa analogia entre o Cadillac e o Calhambeque, hoje – há muitos anos já, principalmente nos últimos 25 ou 30 – as pessoas que não se atualizam e acompanham a tecnologia simplesmente ficam fora do mercado de trabalho. É impossível fazer hoje o trabalho que se fazia no RH ou departamento pessoal de épocas anteriores. A necessidade é real: adequação e aprimoramento contínuos. Independentemente da idade do profissional, vemos pessoas que estiveram na ativa nos anos 90 e 2000 e conseguem se adaptar às novas tecnologias de forma proativa, buscando conhecimento e querendo acompanhar a tecnologia para permanecer inseridas no mercado de trabalho. Há uma necessidade muito grande de atualização. Quem ainda pensa em deixar a tecnologia de lado simplesmente não permanece no mercado.

Dois anos depois da criação da ABRH, em 1967, “Adivinhe quem vem para jantar” e “Ao mestre com carinho” despontam nas telas, levando a imagem de Sidney Poitier a mais cantos do mundo, bem como uma questão que, na época, insuflava uma luta intensa pelos direitos civis nos EUA, por exemplo. Naquela época, conceitos como diversidade, inclusão e equidade de gênero eram praticamente inexistentes no ambiente corporativo. Hoje, D&I é um dos pilares centrais do CONARH 2025. O que levou o RH brasileiro a abraçar essa causa?

A evolução da temática de diversidade, equidade e inclusão é notável. A ABRH foi precursora nessa discussão durante todos esses anos. Não só no CONARH 2025, mas temos um congresso específico sobre o assunto – já é a terceira edição – em que falamos sobre essa atuação no mercado de trabalho, incluindo povos indígenas e a internalização dessa questão na cultura das empresas. Passamos de um preconceito velado, em que não se falava sobre isso, para dar oportunidade de fato para todas as pessoas no mercado de trabalho. Trazemos experiências de empresas que têm essa metodologia como cultura organizacional e fazem disso um resultado muito positivo. Sabemos que tivemos um desafio grande este ano, principalmente por conta de algumas empresas norte-americanas que retiraram essa bandeira de suas prioridades, impactando nosso mercado brasileiro. Mas nossa luta é que essa pauta esteja sempre alinhada com os pilares da ABRH, para ter um cenário igualitário por meio de equidade e inclusão. Reforçamos isso em todas as nossas seccionais, inclusive temos pelo menos um diretor dessa causa em cada um dos estados e Distrito Federal em que atuamos, alinhados às políticas de recursos humanos defendidas pela ABRH Brasil.

Estruturas extremamente hierárquicas. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. “Nascer”, crescer e “morrer” na empresa, adotando a marca como sobrenome e o chefe como aquele cara forte e sabichão que acabou de sair de um filme de guerra, sem nenhum arranhão. Hoje, falamos de liderança empática, feedback 360° e saúde mental no trabalho. Quando e como aconteceu essa humanização do ambiente corporativo?

Essa cultura empresarial autoritária ainda é um grande desafio para a cultura organizacional. Vem sendo observada por meio de pesquisas de clima organizacional, mas principalmente com a chegada da defesa contra danos morais e assédio moral, intensificando a necessidade das empresas se policiarem mais contra atitudes autoritárias. Infelizmente, isso ainda acontece no mercado. Ainda existem empresas que entendem que essa cultura organizacional é a que prevalece e gera resultado. Há ramos de atuação em que a forma de pressionar pessoas e a hierarquia muito pressionada para resultado ainda é realidade. Isso ainda é um grande desafio para que as empresas de fato se conscientizem de que o melhor resultado vem de pessoas que estão bem, desenvolvendo seu trabalho por meio da saúde mental e melhor clima organizacional. Acredito que essa mudança acontece quando as empresas começam a perceber que o ambiente de trabalho feliz gera mais resultados. Temos indicadores que comprovam isso, como a pesquisa GPTW, que analisa não só aspectos gerais, mas setorizados, de diversos componentes que qualificam como as pessoas são tratadas na empresa. A regulamentação da NR-1 também vai ajudar muito para reduzir essa mentalidade de “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Para muitos, ESG é algo novo. Para outros, é apenas uma versão 4.0 de sustentabilidade com pitadas de compliance. Nos dias de hoje, a agenda ESG tornou-se protagonista nas discussões de RH. Como você vê o papel do profissional de recursos humanos como agente de transformação social e ambiental nas organizações?

ESG não é um assunto novo, apesar do termo ser. O social e o ambiental não são novidades. Acredito que ainda estamos muito longe de os RHs estarem inseridos no G – governança – das empresas como fator de mudança. Precisamos fortalecer para que o RH esteja à frente desse fator de mudança e gestão. O RH é o protagonista natural. A ABRH tem congressos e fóruns específicos sobre ESG há alguns anos, tanto online quanto presenciais, para fortalecer os RHs a falarem melhor sobre essa questão nas empresas. É importante que o profissional de recursos humanos esteja muito preparado para atuar nos conselhos das empresas, por meio de competências técnicas e comportamentais. A cadeira de conselho de gente tem que ser do próprio RH, fortalecendo a posição dessa área internamente. Infelizmente, quando se trata desse assunto, às vezes ainda é algo que se busca externamente. Enquanto recursos humanos, a ABRH traz um olhar muito fortalecido para o desenvolvimento dos profissionais para que sejam protagonistas não só de eventos e defesas do ambiental e social – que inclui equidade, inclusão e voluntariado – mas também do G, da governança, estando no pilar das organizações, discutindo não só o presente, mas o futuro dessas organizações e das próximas gerações.

As empresas ostentavam, com orgulho, duas palavras debaixo de seus nomes nas placas penduradas na porta ou portões, para todos lerem: “sede própria”. O ofício era presencial, das 8h às 18h, com algumas horinhas também nos sábados. Trabalho híbrido ainda era um sonho a ser realizado, porém não aparecia em nenhuma fase do período em que estávamos sob o controle de Morfeu. Como essa nova realidade está redefinindo o papel do RH?

A pandemia da COVID-19 trouxe e acelerou muito algumas temáticas que antes não se discutiam ou havia certa restrição. Uma delas é o trabalho em home office ou híbrido. Muitas empresas conseguiram se adequar, inclusive tendo redução de custos fixos como aluguel ou condomínio, levando as pessoas para casa com resultado satisfatório durante o período obrigatório de distanciamento. Mas ainda é um desafio. Ainda existem muitas empresas e lideranças que só acreditam no resultado vendo a pessoa ali ao lado. Por isso trazemos essa temática para o CONARH, ainda depois de alguns anos pós-pandemia, mas com reflexos sobre resultado, comprometimento e cultura. Um grande desafio é que as pessoas em home office tenham senso de pertencimento cultural da empresa, não vivenciando aquilo todos os dias na prática, mas tendo essa vivência estando onde estiverem. Ainda é fator de muita discussão entre resultado, mentalidade, cultura, clima e desempenho. É uma temática bem desafiadora quando se traz à mesa uma decisão de permanecer híbrido, trazer de volta ou fazer 100% home office.

“Deixa de frescura e vai trabalhar”. “Homem que é homem não fica deprimido”. “Essa mulher é histérica”. Como o RH passou de uma visão meramente produtivista para uma preocupação genuína com o bem-estar mental dos colaboradores?

A questão da saúde mental vem sendo muito bem discutida e isso foi intensificado com os reflexos da pandemia. Saímos de um modelo de produção “custe o que custar” para entender os limites de como as pessoas conseguem ter essa entrega. Aquela velha justificativa de “uma coisa lá fora, outra dentro da empresa” não faz sentido. Não somos máquinas que mudam de lugar e pronto. As pessoas trazem suas questões psicológicas externas e levam também para fora aquilo que internamente nas empresas vem adoecendo as pessoas. Acredito que essa preocupação genuína com bem-estar e saúde mental se intensificou pós-pandemia, mas já havia um movimento importante. A ABRH Brasil já falava disso antes da pandemia no nosso fórum de saúde, sobre o cuidado que se deve ter com as pessoas nas organizações e os reflexos que isso pode gerar. Hoje temos números cada dia maiores de burnout e afastamentos por esse motivo. As pessoas se expõem mais. Antes, os afastamentos eram muito por saúde física, mas hoje as pessoas conseguem identificar e tratar a causa, não a consequência. O RH tem que ter essa visão e direcionar com programas de saúde mental do trabalho, ouvidoria, desenvolvimento da liderança, avaliações e pesquisas para saber como está o ambiente de trabalho.

Voltemos à nossa máquina do tempo. Conscientemente, escolhemos um destino 60 anos à frente. Qual o cenário em termos de RH você vê ou espera encontrar? E que tipo de profissional de RH vai esbarrar conosco por lá?

Os profissionais de recursos humanos que esperamos encontrar no futuro são muito diferentes dos de 60 anos atrás, que eram extremamente operacionais. Esperamos profissionais o menos operacionais possível, principalmente na liderança de recursos humanos. Muitos cargos serão extintos, como já vem sendo pelos últimos 60 anos, por conta da tecnologia. O profissional de RH tem que estar muito preparado para entender como vai operacionalizar e direcionar essa tecnologia. A tecnologia não vai conseguir pensar sozinha; sempre tem uma pessoa de extrema inteligência que a conduz. Acima de tudo, os profissionais de recursos humanos têm que estar no topo das decisões nas empresas. Por isso reforçamos tanto a importância da formação em governança e conselho empresarial, que consiga falar com o negócio de forma estruturada e estratégica. Falando de resultado, mas sem esquecer as pessoas envolvidas e, em especial, saúde mental e bem-estar. Hoje, cada dia mais, a concorrência por bons profissionais é maior. Não gosto da palavra retenção, prefiro falar de engajamento das pessoas nas empresas, para que permaneçam dando seu melhor e tenham orgulho de trabalhar e desenvolver seu melhor desempenho. O RH do futuro é muito mais estratégico do que se pensa hoje. As mudanças vão acontecer, as pessoas vão ter que se desenvolver muito para ocupar outros espaços que a tecnologia está liberando.

Qual conselho você daria para um jovem profissional que está entrando no RH hoje, pensando nos próximos 60 anos de evolução da área?

O mesmo conselho que dou para profissionais que já estão na área: atualização constante. Hoje tudo muda muito mais rápido que antes. É preciso estar em um ambiente dinâmico de desenvolvimento e pensar naquilo que pode ser previsto, por mais que seja difícil. Por isso trabalhamos tanto a gamificação no desenvolvimento, pensando em novas possibilidades e cases que acontecem e poderiam acontecer. Ninguém imaginava uma pandemia e que os profissionais de RH tivessem que se adaptar tão fortemente à parte trabalhista, segurança do trabalho, questões legais, saúde, bem-estar, benefícios e até orçamentos e finanças. O profissional de recursos humanos tem que entender que precisa estar envolvido com todas as áreas do negócio, se desenvolvendo em partes que fogem um pouco da psicologia organizacional ou do administrativo, mas que vão ao encontro de resultados e possíveis mudanças, especialmente na área de tecnologia.

Para encerrar: em meio a tantas transformações tecnológicas e sociais, o que considera que é a essência imutável do RH?

Nos últimos anos, a essência do RH passou de mais operacional para estratégico, e de mais coletivo para também individual, sem deixar de ver o grupo. Mas o que é inegociável para o profissional de recursos humanos é olhar para o ser humano – sim como indivíduo, sim como grupo. Sempre vendo as causas que estão gerando consequências, seja um bom resultado ou um resultado mediano, e tratando para que as pessoas estejam no melhor ambiente de trabalho, que a empresa esteja no seu melhor ambiente de desenvolvimento e zelo pelas pessoas, pela sociedade e pelo ambiental. O profissional do futuro – e isso é inegociável – tem que estar muito ligado às questões ESG, que resumem as competências de um profissional de recursos humanos. Novamente, a importância desse profissional na tomada de decisão, no topo da hierarquia, para que de fato esteja sustentando as empresas e as pessoas no mercado de trabalho e também na posição das empresas enquanto marcas. É nesse contexto que o profissional deve estar não só agora, mas pelos próximos anos, na decisão daquilo que de fato precisa desenvolver enquanto organização.